Retratos de um “apartheid” médico
31 de outubro de 2008 | Autor: antonini
Para acelerar a liberação de drogas ultra-lucrativas, as corporações
farmacêuticas recorrem cada vez mais a cobaias humanas dos países
pobres. Milhões de pessoas submtem-se, por migalhas, a testes sem
supervisão, sem padrões éticos e que muitas vezes as privam de
medicamentos essenciais.
Sonia Shah
A indústria multinacional farmacêutica gasta quase 40 bilhões de dólares
por ano para desenvolver novos medicamentos. Para isso, mobiliza uma
crescente parcela dos cientistas mais experientes do mundo e a mais
sofisticada tecnologia médica.
Com tal investimento maciço poderia se esperar um aumento do número de
medicamentos de impacto dirigidos para os flagelados da humanidade. No
entanto, esse ano, só a malária atingirá 500 milhões de pessoas no
mundo, e matará cerca de três milhões. Os remédios mais modernos de que
os médicos dispõem para tratá-los são anti-diluvianos: um medicamento
chinês de mil anos, que substitui uma droga desenvolvida há mais de 50
anos [1].
A indústria famacêutica não desprezou as partes do mundo assoladas por
doenças como a malária. Pelo contrário: nunca antes os fabricantes de
remédios deram tanta atenção aos pobres do mundo. Os grandes
laboratórios estão realizando milhares de ensaios clínicos nos países em
desenvolvimento — Bulgária, Zâmbia, Brasil e Índia, por exemplo.
Aninhado contra as favelas enegrecidas de fuligem em Mumbai ergue-se o
reluzente prédio branco da Novartis, onde os pesquisadores franzem as
sobrancelhas na busca de novas drogas. Ao redor das que se espalham
cercando a Cidade do Cabo, ficam os cintilantes laboratórios de teste da
Boehringer Ingelheim. Recentemente, a Pfizer, a Glaxosmithline (GSK) e a
Astrazeneca instalaram centros globais de testes clínicos na Índia. Ano
passado, a GSK realizou mais da metade dos seus testes de drogas novas
fora dos mercados ocidentais, escolhendo em particular países de “baixo
custo” para os testes “deslocalizados” [2].
As empresas não estão lá para curar os males dos doentes pobres que
fazem fila em suas reluzentes clínicas de pesquisa. Os fabricantes de
drogas foram aos países em desenvolvimento para fazer experimentos com
as multidões de doentes miseráveis. Utilizam-se deles para produzir os
remédios destinados às pessoas cada vez mais saudáveis em outros
lugares, em particular ocidentais ricos que sofrem os desgastes da
idade, como doenças cardíacas, artrite, hipertensão e osteoporose. Essa
tendência — desenvolver drogas para os ricos globais testando-as nos
pobres globais — além de não ser um investimento de recursos científicos
preciosos, ameaça os direitos humanos e a saúde pública global.
Num mercado de bilhões, 100 mil
“voluntários” para cada droga
Os Estados Unidos são o maior mercado de remédios do mundo. O
norte-americano médio leva para casa dez receitas médicas por ano. Desde
2000, a indústria farmacêutica cresceu 15% por ano, triplicando o
lançamento de drogas experimentais entre 1970 e 1990. Isto se deve, em
grande parte, a mudanças nos regulamentos dos EUA sobre remédios. Em
1984, a agência norte-americana de medicamentos e alimentação (Food and
Drug Administration, FDA) estendeu as patentes dos fabricantes para
novas drogas; em 1992, começou a aceitar pagamentos de fabricantes em
troca do exame e liberação mais rápida de suas drogas novas e, em 1997,
suprimiu as regras que baniam anúncios de televisão para os remédios
novos. Essa mudança bastou para trazer uma grande transformação na
indústria. Pela primeira vez, permitiu-se aos fabricantes de remédios
dirigir as propagandas mais atraentes dos remédios novos diretamente a
um grande número de consumidores, sem a mediação cética de um médico.
Há muito dinheiro a ganhar vendendo remédios para norte-americanos: a
indústria de medicamentos é uma das mais lucrativas do mundo. O problema
é que quanto mais apreciam remédios, menos pessoas estão dispostas a se
inscrever nos testes clínicos exigidos para desenvolver os novos. Cada
droga nova exige cerca de quatro mil voluntários para os testes
clínicos, o que por sua vez significa que 100 mil pessoas têm de ser
atraídas para os ensaios iniciais. Por que tantos? Porque não é fácil
desenvolver novos remédios para doenças do coração, artrite, hipertensão
e outras condições crônicas não contagiosas.
Apesar do máximo esforço da indústria, a maioria das novas drogas
destinadas a tratar dessas doenças tem eficácia apenas marginal. Algumas
são similares a uma pílula de placebo. “Você sempre tem que batalhar
para encontrar uma diferença” entre os pacientes tratados e
não-tratados, diz um pesquisador clínico veterano. Não é preciso testar
muitos pacientes para provar a eficácia, por exemplo, da insulina para
pessoas em coma diabético, porque o efeito da droga é muito visível. Mas
provar que drogas de baixa ação, como antialérgicos, medicamentos para o
coração ou pílulas antiinflamatórias têm uma eficácia real exige um
grande número de pessoas testadas.
A necessidade da indústria encontrar voluntários para experimentos é
imensa. Entretanto, pouco mais de um em vinte norte-americanos estão
dispostos a participar de testes clínicos. A razão é óbvia. Por que se
expor a compostos experimentais, não testados, quando o leque de
alternativas comprovadas está ao alcance das mãos?
Quanto mais doenças e “eventos”, mais
fáceis e rápidos os testes
Para resolver o problema, os fabricantes das drogas fazem testes para
comparar o efeito dos seus remédios novos com o de um placebo. Basta
provar à FDA que um medicamento novo funciona melhor do que nenhum. É um
padrão simples que dá um resultado mais claro em menos tempo. O único
problema com os testes de placebo é que exigem um número suficiente de
pessoas que queiram participar de um experimento em que podem não
receber tratamento algum – uma tarefa cada vez mais impossível,
especialmente no Ocidente mergulhado em remédios.
Como resultado, 80% dos testes clínicos da indústria farmacêutica falham
em cumprir os prazos de recrutamento. Para cada dia de atraso no
desenvolvimento de uma droga, as companhias perdem cerca de um milhão de
dólares em vendas, enquanto seus concorrentes ganham mercado.
Se as pessoas nos países em desenvolvimento estivessem sofrendo apenas
de malária e doença do sono, é claro que não interessaria fazer testes
nesses lugares. Mesmo que cada doente de malária tivesse um dólar para
gastar com remédios – o que não acontece – esse mercado não seria grande
o bastante para deslocar pesquisadores da indústria para laboratórios.
Um mercado de 200 milhões de dólares, segundo a Organização Mundial da
Saúde (OMS) [3], é o mínimo necessário para despertar o interesse da
indústria.
Não importa. Atualmente, além de malária e tuberculose, as pessoas dos
países em desenvolvimento sofrem das doenças nas quais os fabricantes de
drogas dos mercados ocidentais estão mais interessados. De acordo com a
OMS, 80% das mortes por doenças crônicas não contagiosas, como males
cardíacos e diabetes, agora ocorrem nos países em desenvolvimento. Há
mais diabetes tipo II na Índia do que em qualquer outro lugar do mundo.
Em alguns lugares da África, uma em cada cinco pessoas sofre de diabetes
e 20 milhões de africanos padecem de hipertensão [4].
África do Sul: “um país ótimo para a AIDS”…
De acordo com a OMS, as implicações desse fenômeno para a saúde
pública “são inquietantes e já estão aparecendo”. Por serem pobres e
sofrerem incômodos de saúde mais prementes, poucos pacientes são
tratados. Inevitavelmente, sofrem mais complicações do que os pacientes
bem tratados do Ocidente. Isto oferece uma oportunidade para os testes
industriais. Para provar que um remédio para o coração funciona, por
exemplo, é preciso mostrar que quem não toma esse remédio sofre mais
“eventos” — sejam ataques cardíacos ou mortes — do que quem toma o
remédio. Os testes nos países pobres podem completar-se muito mais
depressa. Como observou um executivo de uma companhia de testes
clínicos, durante uma conferência sobre a adequação dos países pobres
para testes clínicos: “se não houver eventos suficientes, você nunca vai
terminar seu teste”.
Outro executivo de companhia de testes clínicos afirmou: “A África do
Sul é um país ótimo [para AIDS]”, por causa do grande número de
pacientes infectados pelo HIV ainda não tratados com drogas anti-virais.
Com freqüência os fabricantes de drogas ficam frustrados em suas
tentativas de provar que as novas drogas funcionam nos corpos
impregnados de medicamentos dos ocidentais testados. Há tantas drogas em
seus organismos que é cada vez mais difícil observar o efeito do
composto experimental. Assim, os pacientes-virgens – pessoas doentes
pobres demais para obter tratamento médico – são altamente valorizados
nos testes clínicos.
Mas o grande atrativo para a localização dos testes em países mais
pobres é a rapidez. Na indústria farmacêutica de hoje, onde os
fabricantes de remédios manobram para ser os primeiros do mercado com a
última insulina aspirada ou o novíssimo anti-depressivo, a velocidade é
essencial. Nos países ocidentais, recrutar um número suficiente de
voluntários para testes pode levar meses e até anos. Nos países em
desenvolvimento, o recrutamento é rápido. Na África do Sul, a Quintiles
alistou três mil pacientes para testar uma vacina experimental em nove
dias. Em doze dias, recrutou 1.388 crianças para outro teste. Além do
mais, no Ocidente, de 40 a 60% dos inscritos são instáveis e acabam
largando os testes clínicos, incomodados por efeitos colaterais
desagradáveis ou pelo inconveniente de se deslocar até a clínica. Em
lugares como a Índia, as companhias de testes clínicos dizem que
conservam 99,5% dos voluntários inscritos [5].
Não é fácil para os fabricantes de drogas ocidentais levarem seu negócio
de testes clínicos para os países pobres. Muitas vezes, eles precisam
traduzir documentos, equipar clínicas e hospitais sem recursos, treinar
os médicos locais e lidar com uma burocracia estrangeira e
freqüentemente corrupta. Mas, apesar desses desafios, para a maior parte
dos grandes fabricantes de drogas, realizar os experimentos em países em
desenvolvimento tornou-se uma necessidade. Empresas que oferecem
consultoria sobre como realizar testes nesses países floresceram,
tornando-se uma indústria secundária.
Grandes empresas de testes multiplicam
filiais no Sul do planeta
As companhias de testes clínicos (também chamadas organizações
de contratos de pesquisa, ou CROs) como a Quintiles e a Covance ostentam
escritórios e consultórios por toda parte dos países em desenvolvimento.
A Quintiles tem clínicas no Chile, México, Brasil, Bulgária, Estônia,
Romênia, Croácia, Letônia, África do Sul, Índia, Malásia, Filipinas e
Tailândia. A Covance alardeia que pode fazer testes em 25 mil centros
médicos, em uma dezena de países. A imprensa comercial da indústria dos
testes clínicos exalta-se com entusiásticos artigos como “Sucesso com
testes na Polônia” e “Oportunidades de um bilhão de dólares em pesquisa
clínica na Índia”. “Descubra a Rússia”, diz uma manchete de uma revista
de propaganda, que lembra estranhamente a exuberância de um guia
turístico, “para fazer pesquisa clínica”. “Vá esquiar onde existe neve”,
recomenda outro anúncio de uma companhia que vende serviços de testes
clínicos em países pobres. “E vá fazer testes clínicos onde existem
doentes”.
E então, qual é o problema? Os testes clínicos oferecem por toda a parte
melhor tratamento do que as clínicas regulares, que fazem os pacientes
esperar o dia inteiro em seus consultórios quase vazios. Os pacientes
pobres poderiam considerar-se com sorte por participar de testes
clínicos – e a alegria com que eles acorrem sugere que sabem disso.
Ainda por cima, as clínicas e hospitais nos países pobres têm acesso a
tecnologia avançada e freqüentemente capitalizam-se com o novo
equipamento que os fabricantes de drogas trazem para que realizem os
testes. “Recebemos alguns equipamentos”, lembra um pesquisador clínico
da Índia, “e eles não os pediram de volta”.
Ser uma cobaia humana pode ser um papel que os ocidentais não querem
mais fazer, mas isso não quer dizer que não é um bom negócio para os
pobres. Por que não mandar os testes para lá, do mesmo jeito que
mandamos as fábricas tóxicas e as sweatshops? [6] É melhor do que nada.
“Disseram [que eu] estava levando vantagem!”, queixou-se um pesquisador
industrial criticado por fazer testes em países pobres. “Mas sem o
teste, aquelas crianças morreriam!” Na incansável análise
custo-benefício tão popular nos Estados Unidos, exportar desagradáveis
testes clínicos para países pobres faz sentido. “Acho que em geral é bom
para as pessoas participar de testes clínicos”, diz o diretor médico da
FDA, Robert Temple. “Metade das pessoas recebe medicamentos ativos e
melhor tratamento”, diz ele. “A outra metade…[recebe] melhor
tratamento”.
Entretanto, oferecer o corpo à ciência não é o mesmo que dar um dia de
trabalho numa fábrica. Mesmo o emprego superexplorado no sweatshop, seja
como for, oferece benefícios palpáveis ao indivíduo, ainda que magros:
trabalho, um pequeno contracheque. O teste clínico não garante nada. Na
escala da comunidade, os pesquisadores podem equilibrar os riscos e
benefícios. Mas não há garantia de que um voluntário será mais
beneficiado do que prejudicado num experimento (O fato de que existe uma
incerteza, naturalmente, é parte da razão pela qual uma experiência é
realizada).
“Eles têm mais disposição para ser cobaias”
O pré-requisito absoluto à procura ética sobre os seres humanos
– como está codificado em inúmeros documentos, inclusive na Declaração
de Helsinki [7], da Associação Médica Mundial e no Código de Nuremberg
[8] – pressupõe que os recrutados para a pesquisa sejam informados e
consintam voluntariamente. A condição de voluntário significa que a
pessoa pode entrar ou sair: não pode haver coerção, ainda que sutil —
seja sob a forma de um pacote de compensações excessivamente generoso ou
do acesso a cuidados médicos de outro modo inatingíveis, para
influenciar indevidamente a decisão potencial do voluntário de expor-se
a um teste experimental (Quando ativistas contra a AIDS pediram que os
pesquisadores garantissem tratamento por toda a vida para os voluntários
que fossem infectados durante o teste de alguma vacinas, os
pesquisadores argumentaram que tal exigência violaria o princípio do
consentimento voluntário. O negócio ficaria bom demais: até gente não
infectada poderia inscrever-se só para conseguir remédio de graça).
E ainda assim, um crescente conjunto de evidências sugere que os
voluntários em países em desenvolvimento não consentem espontaneamente
em ser testados. Especialistas em bioética rastreiam o número de pessoas
que se recusam a participar ou que desistem dos testes como uma espécie
de indicador a posteriori. Nessas duas ocasiões, mostram que entendem
que sua participação nos testes é voluntária. As taxas de recusa e
desistência nos testes ocidentais podem atingir 40% ou mais. Mas, quando
a Comissão Consultiva Nacional de Bioética da França realizou um estudo
anônimo com os pesquisadores clínicos atuantes nos países em
desenvolvimento, 45% deles disseram que os voluntários nunca se
recusavam a participar dos testes.
A grande velocidade de recrutamento nestes testes – três mil voluntários
para um teste de vacina, em nove dias, ou mil e trezentas crianças para
um teste, em 12 dias – sugere, do mesmo modo, que não há desistências ou
recusas. Eram muito poucos, se é que havia, os que diziam “não”. [9]
Num estudo sobre a qualidade do consentimento de voluntários alistados
em testes de prevenção contra o HIV, na África do Sul, mais de 80% dos
voluntários disseram que não sabiam que podiam desistir do teste se
quisessem. Resultados similares foram obtidos num teste em Bangladesh
[10]. Essa prova de coerção seria motivo para realizar poucos testes
nessa população, mas está sendo usada para realizar mais testes. O fato
de que os potenciais recrutados não dizem “não” é um aspecto vendável
para as companhias de testes clínicos em atividade nos países em
desenvolvimento. De acordo com um artigo no Applied Clinical Trials, os
voluntários russos “não faltam às consultas, tomam todas as pílulas
necessárias e só muito raramente voltam atrás. Os russos fazem o que os
médicos mandam. Que fenômeno!”. Uma história de Centro de Vigilância
sobre Testes, na China notou, do mesmo modo, que “os chineses não estão
completamente emancipados como nos EUA. Eles têm mais disposição para
serem cobaias”.
Agências de supervisão fecham os olhos para
testes em países pobres
A supervisão européia e norte-americana destes testes é mínima. Quando
um fabricante de drogas decide lançar uma experiência clínica nos
Estados Unidos ou na Europa, primeiro precisa alertar as autoridades
reguladoras e enviar todos os dados pré-clínicos – dados de laboratório
e de testes com animais, junto com planos detalhados de como planeja
usar a droga experimentalmente em seres humanos. Dados de testes no
exterior são aceitos pelas autoridades reguladoras norte-americanas e
européias, mas nenhuma exige que os fabricantes de drogas alerte-as
antes de iniciarem os experimentos no exterior. Para esses testes, a
única exigência é que a Declaração de Helsinki ou regras locais que por
acaso garantam mais proteção sejam observadas. Se falharem – e 90% das
drogas que entram nos testes clínicos falham em obter a aprovação
regulatória – e não forem usados para apoiar o lançamento no mercado,
então não há de fato controle norte-americano ou europeu sobre os
experimentos. Sem descrição em parte alguma, os testes que fracassam nos
países pobres simplesmente desaparecem sem deixar traços.
Nesse caso, a Declaração de Helsinki é suficiente? Poderia ser. O
principal mecanismo de força da Declaração de Helsinki está nos comitês
independentes – comitês de ética – que devem aprovar e supervisionar
testes clínicos para assegurar que os direitos dos voluntários sejam
protegidos. Seria ótimo se a infraestrutura ética e regulatória nesses
países estivesse à altura da tarefa. Mas há provas indicando que em pelo
menos alguns desses países, provavelmente não é assim. A Índia é um
exemplo.
Funcionários do governo na Índia estão interessados na expansão dos
testes clínicos, pois vêem uma possibilidade de lucro. Vários
funcionários dizem que esperam expandir testes patrocinados pela
indústria – de U$ 70 milhões para U$ 1 bilhão por ano. Eles instituíram
várias mudanças em suas regras para facilitar os testes clínicos. As
drogas experimentais não precisam demonstrar nenhum “valor especial”
para a Índia, como antes. E as companhias que investem em pesquisa e
desenvolvimento gozam de isenções de impostos por 10 anos [11]. A
indústria dos testes clínicos é vista como um bom negócio para a Índia.
De acordo com o Economic Times, o principal jornal de negócios do país,
“as oportunidades são grandes, as multinacionais estáo ávidas, as
companhias da Índia estão querendo. Temos as competências, as pessoas e
temos uma vantagem que a China não tem e provavelmente nunca terá. O
melhor é que esse é um tipo de deslocalização contra a qual os
trabalhadores americanos não estão inclinados a protestar.”
O conflito de interesses dos reguladores do governo indiano não é
insuperável. Uma possível abordagem seria aumentar a supervisão sobre os
voluntários de testes. Mas, ao contrário, em quase todas as áreas de
prática e pesquisa médica da Índia existe uma clara lacuna de
regulamentos.
Índia, o laboratório ideal: não há código de ética médica
O ensino médico é pouco regulamentado. Escolas de Medicina foram
flagradas contratando professores falsos para tapear inspetores,
vendendo matrículas e leiloando títulos. Uma vez diplomados, os médicos,
na Índia, não precisam demonstrar competência.
A prática clínica é insuficientemente normatizada. A Associação Médica
Indiana não adota código de ética algum, de modo que quando três quartos
dos médicos em Surat fugiram da cidade, durante um surto de peste – que
poderia ser tratada por antibióticos se houvesse médicos para
receitá-los –, as autoridades médicas nacionais ficaram em silêncio.
O mercado farmacêutico é notoriamente sub-regulamentado. Há cerca de 70
mil marcas de remédios disponíveis, com apenas 600 inspetores. Em um
estudo, descobriram-se cerca de 70 combinações de remédios ineficazes ou
perigosas no mercado (continuam a ser vendidas sob mais de mil marcas
diferentes). Vendem-se remédios para indicações mal definidas como
“queda intelectual”, “desajuste social” e “deterioração do
comportamento”. Uma pesquisa de uma revista, em 2003, descobriu que um
em cada quatro dos remédios que estavam disponíveis eram falsos ou
abaixo dos padrões. Numa batida em 2003, na cidade de Patna, sete entre
nove farmácias estavam operando sem licença. Pelo país afora, receitas
de remédios são rotineiramente conseguidas por cima do balcão [12].
No entanto, de acordo com o conhecido perito em drogas Chandra Gulhati,
editor do Monthly Index of Medical Specialties in Índia, “mesmo que uma
companhia faltosa seja apanhada com a boca na botija em atividades
ilegais, é liberada, por razões melhor conhecidas pelos reguladores, com
uma ligeira advertência”.
De acordo com o principal bioeticista do país, Amar Jesani, “não há
cultura ética na profissão” na Índia. Foram necessárias três décadas,
após a primeira formulação da idéia do consentimento informado – durante
o julgamento dos médicos nazistas em Nuremberg nos anos 1940 –, para que
os Estados Unidos lhe dessem força de lei. Levou mais duas décadas para
que a instituição da pesquisa médica dos EUA incorporasse os novos
padrões em seu licenciamento, ensino e práticas clínicas. Esse processo
tinha que ser iniciado em países como a Índia, onde em 2003, nenhuma
escola de Medicina dava cursos de ética médica. Para supervisionar
testes clínicos patrocinados pela indústria, comitês de ética são
devidamente organizados, mas de acordo com o ativista da saúde Sandhya
Srinivasan, eles não funcionam para proteger voluntários e sim para
“possibilitar a divulgação”.
Esterilizações involuntárias, doentes de lepra sem tratamento
Não é surpreendente que tenha havido uma série de escândalos na pesquisa
e prática médica por todo o país. Nos anos 1970, a quinacrina, remédio
contra a malária, foi distribuído para milhares de mulheres sem
instrução, provocando-lhes a esterilização permanente. A droga tinha
sido desaprovada para esse uso e muitas das mulheres disseram,
posteriormente, que tinham sido enganadas para tomá-la. Nos anos 1980,
um anticoncepcional injetável — já retirado do mercado — foi testado em
aldeãs que declararam que “não faziam idéia de que estavam participando
de um teste”. Num experimento com a lepra, patrocinado pelo governo em
1991-1999, voluntários disseram que não sabiam que o teste era com
placebo.
No fim dos anos 1990, pesquisadores do governo realizaram tratamento de
1100 mulheres analfabetas com lesões pré-cancerosas nas vértebras
cervicais para estudar a progressão da doença. Mais tarde, descobriu-se
que as pessoas não tinham sido informadas e não tinham dado
consentimento. Em 2001, um pesquisador da Johns Hopkins foi apanhado
testando uma droga anti-câncer experimental em pacientes com câncer no
estado indiano do Kerala, antes da droga ter sido experimentada em
animais. Em 2003, um remédio experimental contra câncer foi administrado
em mais de 400 mulheres que procuravam aumentar sua fertilidade. A droga
era tóxica para os embriões [13].
Países ocidentais também tiveram suas próprias histórias de
transgressões, e entre as mais infames delas está o estudo sobre a
sífilis do Serviço de Saúde Pública norte-americano de Tuskegee. O
tratamento para a sífilis foi negado a dezenas de negros pobres do
Alabama rural. O estudo sobre sífilis, quando exposto, levou às
primeiras proteções legais a pessoas estudadas em pesquisas nos Estados
Unidos, em 1974. Nenhum dos escândalos de pesquisas na Índia, por mais
que tenham sido publicizados na imprensa, levou a qualquer proteção
legal para os voluntários. Esses fatos não são novidade para os
reguladores do FDA, que demonstram uma grande confiança na habilidade
dos voluntários em se auto-proteger, oferecendo ou retirando seu próprio
consentimento informado voluntário.
Uma prática que solapa a legitimidade da
medicina ocidental
Contudo, testes clínicos realizados de forma não-ética fazem mais do que
minar os direitos humanos: solapam a legitimidade da medicina ocidental,
de modo mais geral. A crise de confiança entre muitas pessoas no mundo
em desenvolvimento e a medicina estilo ocidental aprofunda-se
diariamente. O espectro de uma explosão de testes clínicos secretos
pouco controlados inflama tais reações. Muitos fabricantes de drogas e
pesquisadores clínicos concordam que a coerção e a falta de informação
são problemas óbvios, mas alegam que as grandes esperanças com a
pesquisa biomédica compensam os riscos e sustentam que, se a
regulamentação for exagerada, os testes clínicos e o ritmo da inovação
médica vão se reduzir e mais pessoas vão morrer.
Esse argumento é fraco, mas comum e poderoso. Pode ser verdade que a
qualidade do atendimento nos testes clínicos seja freqüentemente
superior ao tratamento normal e que os médicos encarregados dos ensaios
tenham acesso à mais recente tecnologia, instrumentos e recursos que
eles podem destinar ao cuidado dos pacientes. Esses são benefícios
concretos dos testes clínicos. Mas os dados em si não podem significam
automaticamente progresso da medicina (qualquer um que tenha visto as
mais modernas vacinas apodrecendo em almoxarifados tropicais pode
confirmar). O progresso da medicina requer a implementação da pesquisa,
não apenas testes, e isso exige que governos, programas de saúde,
pacientes e muitos outros atores tenham de fato algo a ver com os dados.
Devíamos exigir que os voluntários pelo menos tivessem acesso aos
métodos comprovados nos seus testes, não apenas num futuro hipotético,
mas aqui e agora. Com excessiva freqüência, novas drogas desenvolvidas
com experimentos em habitantes dos países pobres não são licenciadas
para uso nesses países, têm preços proibitivos, ou não são utilizáveis
porque a droga não é importante de um ponto de vista clínico.
Precisaríamos exigir, também, alguma forma de confirmação ou validação
para que o consentimento informado fosse de fato informado e voluntário.
Tais medidas poderiam acabar com alguns testes. Mas como disse o
bioético Jonathan Moreno, seria parte do preço que pagamos para
reconhecer que há uma diferença entre um rato de laboratório – que não
precisa ser consultado se quer participar de um experimento [14] – e um
ser humano.
– A piada do consentimento informado
– As quatro fases de cada teste
Tradução: Betty Almeida
betty_blues_@hotmail.com