Brincar de Deus, como os próprios cientistas dizem com bom humor, criando formas artificiais de vida. Nunca eles estiveram tão perto de levar esta brincadeira a sério como agora.
A equipe do Dr. Jason Chin, da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, reprojetou uma célula para torná-la capaz de ler o código do DNA de quatro em quatro letras, e não mais de três em três, como os seres viventes na Terra fazem.
Código genético artificial
Na prática, isto representa a criação de um código genético paralelo, que pode induzir as células vivas a criar proteínas com propriedades nunca vistas no mundo natural.
Em tese, o código genético paralelo poderá permitir a criação de formas vida “melhoradas”, ou mesmo totalmente novas, tornando realidade as profecias do transumanismo, uma corrente polêmica de pensamento que propõe que os avanços da robótica, da nanotecnologia, da biologia e da genética permitirão a criação de uma nova classe de seres humanos com superpoderes – seres humanos com corpos à prova de bala, por exemplo – veja mais na reportagem Você está preparado para conviver com os humanos aprimorados?.
Ribossomo artificial
Em todas as formas de vida conhecidas, o mecanismo interno das células lê as quatro “letras” do DNA em conjuntos de três, criando cadeias de aminoácidos. Essas letras – ACGT – representam os nucleotídeos Adenina, Citosina, Guanina e Timina.
Cada letra contém o código para um aminoácido específico – ou diz para a célula encerrar a cadeia que ela está construindo.
Agora, o Dr. Chin e seus colegas tornaram a célula capaz de ler as letras do DNA de quatro em quatro, elevando de 22 para 276 o número de aminoácidos que podem ser usados para formar uma proteína. Isto porque o novo código torna possível a criação de 256 palavras, ou códons, com as quatro letras do DNA, cada uma das quais pode ser atribuída a um aminoácido que não existe nas células vivas atuais.
O feito foi possível graças à criação de um novo ribossomo, chamado de ribossomo ortogonal, capaz de ler as mensagens codificadas nos códons quádruplos. Com o ribossomo artificial e o ribossomo natural trabalhando paralelamente no interior da célula, os cientistas conseguiram induzi-lo a produzir novos aminoácidos sem interferir com o funcionamento normal da célula.
Proteínas artificiais
Em experimentos feitos com a bactéria E. coli, os pesquisadores confirmaram a produção de dois aminoácidos não-naturais capazes de reagir entre si para formar uma ligação química diferente das ligações que mantêm unidas as proteínas naturais.
Inseridos em uma proteína chamada calmodulina, elas induziram a formação de uma “calmodulina mutante” que possui uma estrutura completamente diferente da natural.
E as ligações entre os aminoácidos não-naturais parecem ser muito mais estáveis, o que permitiria que as proteínas resultantes sobrevivam em condições ambientais que destruiriam as proteínas naturais.
Para testar seus ribossomos mutantes, os cientistas colocaram-nos em culturas de bactérias crescendo em um meio contendo antibióticos e dotaram as células com um gene de resistência a antibióticos que inclui um códon de quatro bases.
Os ribossomos capazes de ler o códon quádruplo produziram a proteína de resistência ao antibiótico e sobreviveram mesmo na presença de altas concentrações do antibiótico. Aqueles que não conseguiam ler o código quádruplo não puderam criar a proteína para se proteger do antibiótico e morreram.
Materiais artificiais
Em uma utilização bastante plausível – ainda longe de criar formas de vida totalmente novas usando esse novo código genético paralelo – pode-se pensar na utilização das novas proteínas para a fabricação de medicamentos que não sejam destruídos pelos ácidos presentes na boca e no estômago, por exemplo.
Mas daí até a sintetização de células capazes de produzir novos polímeros não parece ser um salto muito grande. Pelo menos não em termos hipotéticos. Um transumanista pode facilmente pensar em células de um organismo vivo capazes de produzir polímeros tão fortes quanto as roupas à prova de bala e incorporá-los em seu esqueleto ou na forma de uma carapaça, ou em uma “super pele”.
Contudo, é difícil precisar quantos passos deverão ser dados até que os cientistas se aproximem dessas possibilidades. Todas as tentativas feitas até hoje para manipular o código genético tradicional, criando “formas sintéticas de vida”, falharam.
Mas o Dr. Chin sonha com a criação de novos materiais, não necessariamente incorporados em seres vivos. Materiais que poderiam ser criados em grandes biorreatores por bactérias que recebam os novos ribossomos com capacidade de ler o DNA em conjuntos de quatro letras.
Ética da vida
O avanço deverá levantar toda a discussão ética em torno da biologia sintética e de eventuais formas artificiais de vida que, ainda que não sejam uma opção imediata, certamente será uma situação com a qual os cientistas em particular, e a humanidade em geral, se defrontarão mais cedo ou mais tarde.
Descobertas como a agora anunciada mostram que essa discussão é necessária e, sobretudo, inadiável, sobretudo para balizar o trabalho dos cientistas e traçar os rumos que se espera que a ciência avance – sem promessas vãs e sem apelações, seja da reconstituição de corpos com deficiências físicas, seja do temor de super homens descontrolados.
Em termos bem mais imediatos, o novo código genético artificial deverá marcar muito mais o nascimento de uma nova era na fabricação de novos materiais extremamente promissores, do que a ameaça de terroristas mutantes dotados de carapaças à prova de balas.
Bibliografia:
Encoding multiple unnatural amino acids via evolution of a
quadruplet-decoding ribosome
Heinz Neumann, Kaihang Wang, Lloyd Davis, Maria Garcia-Alai, Jason
W. Chin
Nature
14 February 2010
Vol.: Published online before print
DOI: 10.1038/nature08817
Transcrito do sítio Inovação Tecnológica