Bactérias evoluem de forma diferente
9 de setembro de 2010 | Autor:
antonini
Uma pesquisa internacional com participação brasileira mostrou que
bactérias idênticas cultivadas em um mesmo ambiente adotam
diferentes estratégias de adaptação.
No estudo, uma população da bactéria Escherichia coli evoluiu de
forma divergente para se adaptar às condições do mesmo meio. Depois
de 37 dias de crescimento contínuo, os cientistas isolaram diversos
mutantes com diferenças importantes em genes regulatórios.
Os resultados do experimento foram publicados na revista Genome
Biology and Evolution. Coordenado por cientistas da Universidade de
Sydney (Austrália) e da Universidade de São Paulo (USP), o estudo
teve também participação de pesquisadores da Universidade Nankai
(China).
O brasileiro Beny Spira, professor do Departamento de Microbiologia
do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, realizou seu
pós-doutorado, com Bolsa da FAPESP, no laboratório de Thomas
Ferenci, da Universidade de Sydney. Ambos são coautores do artigo.
Spira coordena atualmente o projeto “O fator sigma S da RNA
polimerase em linhagens de Escherichia coli diarreiogênicas”,
apoiado pela FAPESP na modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular.
Segundo ele, no experimento de evolução realizado com a Escherichia
coli foi observado um processo de divergência simpática – isto é, em
um mesmo ambiente, a partir de um inóculo inicial geneticamente
homogêneo, uma população de bactérias idênticas evoluiu de forma
divergente para melhor se adaptar às condições do meio.
“A grande novidade é que a evolução ocorreu de forma divergente. Em
um ambiente constante, sem barreiras físicas, observamos estratégias
distintas de adaptação que resultaram em mutações em diferentes
genes regulatórios”, disse à Agência FAPESP.
Para o experimento, os autores utilizaram um quimiostato – uma
espécie de biorreator que mantém as condições da cultura constantes.
No equipamento, o meio fresco é introduzido continuamente, enquanto
o excesso de bactérias é eliminado também de forma contínua por meio
de um exaustor.
“Normalmente, as bactérias em cultura se multiplicam até saturar o
ambiente, mas no quimiostato isso não ocorre, pois a disponibilidade
de nutrientes é constante e outras características físicas, como o
pH, também. No equipamento, as bactérias permanecem sempre em
crescimento exponencial e não entram na fase estacionária”, disse
Spira.
Durante todo o experimento, a taxa de crescimento das bactérias era
de 0,1 por hora – isto é, a população de bactérias levava cerca de
sete horas para dobrar de tamanho, mas se mantinha constante, já que
parte dela era continuamente eliminada”, explicou.
Para impedir a saturação da cultura de bactérias no quimiostato, é
preciso limitar a quantidade de algum nutriente. No caso, a
quantidade de fosfato – elemento crucial para o crescimento das
bactérias – foi limitada.
“Conduzimos o experimento do quimiostato durante 44 dias e, ao longo
desse tempo, retiramos amostras a cada dois ou três dias. No 37º dia
retiramos uma amostra a partir da qual cinco colônias foram isoladas
– sendo que cada colônia representa um clone de uma única bactéria.
Essas colônias foram analisadas e testadas em relação a vários
fenótipos, como morfologia da colônia, sensibilidade a detergentes e
fosfatase alcalina – uma enzima diretamente induzida quando a
bactéria tem acesso limitado ao fosfato”, disse.
A maior parte das bactérias tem um complexo de mais de 40 genes que
respondem ao estímulo externo de limitação de fosfato. “Quando há
pouco fosfato no meio, esses genes codificam proteínas que vão
auxiliá-las a obter fosfato”, apontou.
Algumas dessas proteínas, situadas na membrana da bactéria, captam
fosfato para o organismo, mesmo que o nutriente esteja em baixa
concentração no ambiente.
“Esperávamos que a bactéria, evoluindo em um ambiente limitado em
fosfato por mais de 100 gerações, acumulasse mutações que
resultariam em um aumento na expressão de genes relacionados à
captação de fosfato. Mas não esperávamos que as bactérias adotassem
diferentes estratégias, promovendo mutações em diversos genes
regulatórios”, afirmou.
Motor evolutivo
As bactérias foram então enviadas para os colaboradores chineses,
que fizeram o sequenciamento completo do genoma de todas elas e
realizaram um estudo de proteômica, a fim de avaliar como a
expressão de proteínas se diferenciava entre elas.
“O estudo de proteômica mostrou que havia, no total, mais de 30
proteínas cuja expressão diferia, em cada clone, em relação à
bactéria ancestral. O resultado do sequenciamento foi ainda mais
interessante: as colônias de bactérias sofreram ao todo 12 mutações
diferentes, sendo que três delas se deram em genes regulatórios
importantes”, disse.
Depois dos 37 dias no quimiostato, as colônias de bactérias tiveram
mutações nos genes rpoS, hfq e spoT. O gene rpoS codifica para uma
proteína conhecida como fator sigma S. Os fatores sigma – há sete
deles na Escherichia coli – são responsáveis pelo reconhecimento dos
sítios promotores dos genes, iniciando o processo de transcrição.
Eles associam-se à enzima RNA polimerase para exercer essa função. A
RNA polimerase é a principal enzima do complexo responsável pela
transcrição do DNA em RNA.
“A ligação do fator sigma ao cerne da RNA polimerase é transitória.
Quando a bactéria precisa de fosfato, usa o fator sigma 70 para
iniciar o processo de transcrição do gene que codifica a fosfatase
alcalina”, explicou.
Segundo o professor do ICB-USP, quase todas as proteínas são
reconhecidas pelo fator sigma 70. Mas um outro fator sigma – o sigma
S ou rpoS – ganha importância quando a bactéria está em estado de
estresse, ou limitação nutricional. O sigma S reconhece o promotor
de genes ligados à proteção da bactéria.
“Por um lado, a bactéria busca o crescimento e precisa do fator
sigma 70. Mas, quando ela começa a sofrer uma limitação nutricional,
acumula o sigma S. A bactéria sofre um dilema, pois os dois fatores
competem entre si. Quando um deles é ligado à RNA polimerase, o
outro é desligado e a bactéria precisa equilibrar as necessidades de
crescimento e proteção”, disse.
Dos cinco isolados obtidos no experimento, três possuíam mutações em
rpoS. “Como o ambiente tinha limitação de fosfato, o melhor para a
bactéria era eliminar o rpoS, pois ao competir com o sigma 70 ele
impede que a bactéria consiga mais nutrientes”, explicou Spira.
Esse modelo, segundo Spira, é conhecido como Autopreservação e
Competência Nutricional (Spanc, na sigla em inglês).
“Trata-se de um motor da evolução, já que ele permite acumular
mutações de acordo com a necessidade imposta pelo ambiente. Quando
há muito estresse, o organismo acumula mutações que aumentam a
atividade de rpoS; quando há poucos nutrientes, ele perde rpoS”,
disse.
Além das três mutações no gene rpoS nas cinco colônias isoladas, os
pesquisadores constataram também mutações nos genes hfq e spoT,
ambas resultando em uma diminuição da expressão de rpoS.
“Todas essas mutações em genes reguladores tiveram a finalidade de
melhorar a capacidade nutricional da bactéria, diminuindo a
concentração de sigma S. Esse desvio no equilíbrio Spanc, no
entanto, não é gratuito. A bactéria teve ganho nutricional, mas teve
também perda de capacidade de preservação, ou seja, de proteção
contra estresses ambientais”, disse.
A grande novidade revelada pelo experimento, segundo Spira, é que as
três estratégias distintas de mutação em genes regulatórios
ocorreram em um ambiente constante sem barreiras físicas.
“Com mutações em genes regulatórios, temos uma modificação profunda
na fisiologia da bactéria. Muito possivelmente isso resultaria, a
longo prazo, em um processo de divergência evolutiva que poderia,
eventualmente, levar ao aparecimento de novas espécies”, disse.
O artigo Divergence Involving Global Regulatory Gene Mutations in an
Escherichia coli Population Evolving under Phosphate Limitation, de
Beny Spira e outros, pode ser lido por assinantes da Genome Biology
and Evolutionem.