Uma crônica de natal
Publicado em 16 de dezembro de 1998
Ao que tudo indica, durante os dois primeiros
séculos cristãos e quase metade do seguinte, os discípulos e fiéis
seguidores de Jesus de Nazaré, chamado o Cristo (= Ungido ou Messias),
não festejaram a data do seu nascimento. Foram, coincidentemente, os
séculos de perseguição, da Igreja nas catacumbas e de milhares de
cristãos assassinados pela sua fé, admirados e venerados sob a
designação de mártires ou testemunhas. Não se descarta a hipótese de que
a rudeza dos tempos não era propícia à festa e de que, pouco a pouco,
caiu no esquecimento o dia natalício do Senhor. Se é que esse dia foi
jamais conhecido. Ninguém sabe e pode dizer se entre os semitas, na
cultura e na religião judaica do tempo de Jesus, estariam em voga as
comemorações natalícias.
Com a vitória da Pons Milvius ou Ponte Mílvio (“in hoc signo
vinces!”), a “pax constantiniana” o édito de Milão e o fim das
perseguições ao cristianismo transformado em religião do império, a
Igreja – a comunidade cristã – pode enfim celebrar em suas basílicas o
acontecimento: a vinda de Jesus Cristo, Deus feito homem, e sua Pessoa.
Então naquele início de século IV, tão marcante, por muitos títulos, na
história da Igreja, ainda não foi o nascimento de Jesus – Messias que
foi celebrado. Foi sua Páscoa: agonia, paixão, crucificação, morte e
ressurreição, acrescentadas, sem tardar, a ascensão, Glória e Senhorio à
Direita do Pai. Esta foi, no início, a Festa, por excelência, a maior e
até mesmo a única.
Quando, pouco a pouco, de modo natural, prevaleceu o desejo de festejar
também o nascimento do Salvador, e, por conseguinte, o mistério do Deus
Encarnado, foi preciso fixar um dia no ano. Na impossibilidade de
encontrar a data histórica, procurou-se uma carregada de valor
simbólico. Vigorou, então, um costume da Igreja: construir um sinal
cristão onde quer que se encontrasse algo de pagão. Foi assim que o
Pantheon, de templo de todos os deuses tornou-se santuário de todos os
mártires ou de todos os santos, com festa fixada no dia 1o de novembro.
Assim também, sobre o templo de Minerva, ergueu-se a basílica de Santa
Maria.
Para comemorar o nascimento de Jesus, nenhuma data pareceu melhor e mais
indicada do que o dia 25 de dezembro. Não porque fosse a mais provável,
na verdade era improvável ao máximo que César Augusto convocasse o
recenseamento, com longas e incômodas viagens que comportaria.
Improvável que uma mulher desse à luz numa estrebaria e colocasse seu
Menino envolvido em trapos numa manjedoura, no rigor do inverno da
Judéia. A data de 25 de dezembro era indicada por bem outro motivo.
Naquele dia, mais em uma província do império, menos em outra, mas
afinal em todo o império romano, celebrava-se o deus Mithra. Este era
uma encarnação do sol, mais exatamente o Sol Oriens ou Sol Nascente. Em
Mithra adorava-se o astro-rei porque, vencido e sepultado em cada
anoitecer, ele era bastante forte e soberano para renascer cada manhã,
vivo, radioso, iluminador e fecundante, gerador de vida. Com absoluta
naturalidade, os cristãos transferiram para Jesus Cristo os atributos de
verdadeiro Sol Oriens e puseram-se a festejar, a 25 de dezembro, o seu
sempre antigo e sempre novo nascimento. Sol Oriens. Ele é chamado numa
das antífonas de O’, na liturgia das vésperas, alguns dias antes do
Natal.
Quando, numa época um tanto diluída no tempo e, portanto, não
rigorosamente definida, um tempo chamado do Advento, foi instituído
antes do Natal, como a Quaresma precede a Páscoa, ficou ainda mais
evidente um certo caráter pascal na figura do Sol Oriens, ou Sol que
ressurge cada manhã após cada noite de Paixão. Assim Natal e Páscoa se
entrelaçam na celebração litúrgica do Mistério de Cristo.
Não faltaram épocas em que, segundo tendências da piedade popular, o
aspecto que mais se acentuou no Natal foi o da pobreza de um Messias
nascido numa estrebaria, na periferia de Belém, pequeno burgo na
periferia de um minúsculo país de pouca importância ao lado das grandes
potências de então. Foi também o aspecto da pequenez e fragilidade da
criança nascida de Maria de Nazaré. Este aspecto é profundamente
bíblico: “Ele, rico como era, se rebaixou e tomou a condição de
escravo”, Ele “se esvazou”. O contraste manifestado nestas expressões
empresta grande força ao Mistério do Natal. Os males de um consumismo
desenfreado não deveriam esgotar essa força. Para usar a palavra de
Machado de Assis, não deveria mudar o Natal, neste sentido. Pois é
graças a esta concepção do Natal que o mistério da Encarnação e do Natal
explica o mistério dos Homens e de cada homem.
Feliz Natal e um ano novo pleno de prosperidade e felicidade, e que
todos os seus sonhos e desejos se realizem.
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